COMUNICADO A UMA ACADEMIA
No Comunicado a uma Academia, o personagem principal é um macaco que se transforma em homem para fugir de uma jaula, um macaco que faz um verdadeiro exercício de ascetismo (ἄσκησις) e ganha um passaporte para a humanidade. A filósofa Boulbina (2019) o caracteriza como um monstro do ascetismo. Esta compreensão de Boulbina é, sobretudo, fundamentada na terceira dissertação da Genealogia da Moral, de Friedrich Nietzsche. Se de fato compreendemos Peter Vermelho como um macaco ascético, podemos pensar numa espécie de ascese de primeira e de segunda ordem.
A primeira ascese fala da transformação de Peter Vermelho em homem, o abraço dele com a discursividade humana e seu relato à academia: fiat philosophia. O correlato numa perspectiva crítica da anti-colonialidade é pensar na assimilação do imigrante na Metrópole; a geopolítica do primitivo na periferia do mundo e a soberania do Norte Global; a segunda ascese é somente dada ao Norte Global que estaria distante da animalidade via prática de especismo e capacitismo compulsório, ou seja, a segunda ascese é o se transformar em divino e angelical, seja via filosofia ascética, cristianismo ou trans-humanismo.
Não obstante, Peter Vermelho como o macaco que não é totalmente assimilado permanece como um cidadão de segunda classe, um cidadão cocho, um cidadão manco. É este imigrante no Norte Global que é convidado a se reportar a uma academia para contar as curiosidades de sua vida animalesca. Podemos observar uma determinada potencialidade nessa comunicação, pois é a fala do colonizado numa espécie de antropologia reversa. A pergunta que reverbera é: pode o simiesco falar? O que encontramos é a fala da periferia do mesmo dirigida às asas angelicais e as cabeças loiras racionais da Europa.
A respeito da história de Peter Vermelho sabemos inicialmente que o macaco vivia na Costa do Ouro e foi capturado pela empresa Hagenbeck[1]. Ele levou dois tiros, o primeiro tiro o atingiu de raspão na maçã do rosto e, por isso, ganhou o nome de Peter Vermelho; o segundo tiro o atingiu nas nádegas e, então, ele passou a mancar. Kafka parece mostrar no seu texto as feridas do processo de colonização e a violência do processo de humanização.
Após receber os dois tiros, Peter Vermelho acorda em uma jaula no porão de Hagenbeck. É neste contexto que o macaco tenta “achar uma saída” — a resistência animal com sua sabedoria símia diz que “não é possível viver sem uma saída”. Então ele tem um raciocínio que chama de luminoso, um raciocínio que surgiu bem do fundo de sua barriga (aprendemos com Peter Vermelho que os macacos pensam pela barriga): deixar de ser macaco. Porém, é necessário observar que Peter Vermelho não compreende essa saída da esfera da animalidade como um progresso, mas, ele simplesmente tinha que sair da jaula.
Peter Vermelho afirma que sem uma “calma interior”, isto é, sem uma ascese símia ele não teria conseguido fugir. Esta calma ele aprendeu no barco que o capturou, com a tripulação humana. Peter Vermelho, novamente, é necessário dizer, parece-nos um antropólogo quando afirma que todos os tripulantes daquele barco pareciam iguais com os seus gestos repetidos. Num outro vocabulário diríamos “com suas performances”, mas, também, “com suas próteses que os constituíam como homens”: todas demasiadamente padronizadas, demasiadamente semelhantes.
É observando essa repetição que a barriga de Peter Vermelho pondera como é fácil imitar os humanos com suas performances e suas próteses. É simples imitá-los escarrando no chão ou fumando um cachimbo, dando um aperto de mão ou segurando uma garrafa de aguardente. Para essa facilidade do macaquear o humano, Peter Vermelho tinha um “professor de homens” que o ajudava a combater a sua natureza simiesca. Este professor, às vezes, encostava o cachimbo no pelo do macaco até a pele ficar vermelha, mas, depois apagava-o com a mão; o mesmo professor o ensina a beber algo que achava horrível, sempre buscando uma vitória contra determinada natureza simiesca.
Assim, Peter Vermelho num determinado dia perante um círculo de espectadores simplesmente pega uma garrava de aguardente e depois de ingerir o líquido salta um “Ahhh!” bem sonoro e todos começam a dizer “ele está falando!”. Grande vitória para um macaco que procurava uma saída. Quando ele chega a Hamburgo, já diante do seu novo adestrador, compreende ter duas possibilidades: 1) o jardim zoológico; 2) ou o espetáculo de variedades. Como na primeira opção lhe restaria somente uma nova jaula, em breve vem à tona o exótico Peter Vermelho e seus espetáculos. O símio é pop.
Depois, Peter Vermelho teve outros professores e suas habilidades foram aumentando até o momento de contratar seus próprios adestradores, no intuito de afinar suas performances e adequar as suas próteses. Peter Vermelho devém um cidadão médio semi-europeu e escravo de si mesmo. Kafka termina o seu conto de uma forma complicada para pensar o processo de assimilação e as torções performativas e protésicas, visto que mostra tanto a alegria de Peter Vermelho nos espetáculos, nos banquetes com os eruditos, quanto a miséria íntima no retorno para a sua casa, onde se entrega aos prazeres da sua própria raça.
Parece-nos que para Peter Vermelho nunca houve a transição para um cidadão europeu pleno. Peter Vermelho é ainda um corpo periférico e alvo do racismo. Peter Vermelho é ainda um corpo animalizado e alvo do especismo. Peter Vermelho é ainda o corpo que manca e alvo do capacitismo. Todos esses elementos deveriam aparecer no palco, no espetáculo, que se trata de um zoológico menos violento. Peter Vermelho, nessa nova relação com o exótico, é o espelho da animalidade onde a plateia europeia se vê com fascinação e terror. O exótico é uma heurística do medo para a plateia que escuta: “nunca volte à animalidade!”. O show dele é ao mesmo tempo a exibição da experiência desértica e a recusa da mesma pela plateia. No mais, tanto Gregor Samsa quanto Peter Vermelho, na zooliteratura de Kafka, são animais solitários. Falta-lhes a matilha. Falta-lhes a força da proliferação. Falta-lhes “fazer população no teu deserto” (Deleuze & Guattari, 2002, p. 13. Itálico nosso).
[1]É importante lembrar que quando Kafka nomeia a empresa de Hagenbeck faz referência ao comerciante alemão de animais selvagens Carl Habenbeck (1844–1913). Com suas capturas, Hagenbeck supria grande partes dos zoológicos da Europa. Também, foi ele o criador do zoológico moderno, os quais não deixam os animais completamente enjaulados, mas, encerrados num ambiente mais caricato ao natural. Esta mudança nos zoológicos é conhecida como “Revolução de Hagenbeck”.