rafael leopoldo
9 min readJul 26, 2020

GAYLE RUBIN: SISTEMA SEXO-GÊNERO

O sonho que me parece mais atrativo é o de uma sociedade andrógena e sem gênero — mesmo que não sem sexo — em que a anatomia sexual não tenha nenhuma importância para o que é, o que se faz e com quem faz amor.

Gayle Rubin

Gayle Rubin é uma antropóloga norte-americana conhecida pelo seu ativismo e sua produção teórica sobre questões da sexualidade. Sua grande contribuição para a teoria queer se dá, principalmente, com a publicação do seu longo ensaio “The traffic in women: notes on the ‘political economy’ of sex (“O tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”), de 1975, onde enfatiza os conceitos de “sistema sexo-gênero” e de “heterossexualidade compulsória”. Estes dois conceitos estão interligados, já que a sua compreensão do sistema sexo-gênero é aplicada à ideia de parentesco, onde ela retira o pressuposto de uma heterossexualidade compulsória. É esta relação que abordaremos na tentativa de explanar e expor este conceito tão caro ao pensamento queer.

Rubin é uma das primeiras autoras a tratar da questão de gênero e relacioná-la com a opressão das mulheres. Neste ensaio, ela aborda a temática de como o sistema sexo-gênero pode ser transformar num sistema opressivo. A autora revê alguns dos seus conceitos num segundo artigo chamado “Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality (“Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade”). Abordaremos este primeiro ensaio devido a seu caráter pioneiro sobre a questão de gênero e sua complexa análise de diversos saberes.

Neste ensaio, a antropóloga perpassa alguns autores e autoras privilegiados no diálogo com a teoria queer, mas, também, outros pensadores e pensadoras menos abordados, o que torna o seu texto ainda mais complexo e interessante. Algumas de suas fontes mais conhecidas: Friedrich Engels, Karl Marx, Sigmund Freud, Jacques Lacan, Michel Foucault, Bronislaw Malinowski, Marcel Mauss, Lévi-Strauss, Marshall Shalins, Marilyn Strathern, Jack Goody, Monique Wittig etc. Nota-se que o seu ensaio perpassa a filosofia, a psicanálise, a antropologia e o feminismo, dentre outros saberes para, enfim, construir uma teoria sobre a opressão da mulher tendo como principal fonte metodológica inspiradora Friedrich Engels, pois se trata essencialmente de um estudo do parentesco, tema privilegiado da antropologia.

SISTEMA SEXO-GÊNERO

A teoria acerca da opressão da mulher de Rubin é conhecida sobre a rubrica de um sistema sexo-gênero, ou ainda, o conceito de heterossexualidade obrigatória, ou ainda, heterossexualidade compulsória. No entanto, para compreendermos o conteúdo deste conceito seria necessário regressarmos à leitura que Rubin faz de Marx, Engels, Lévi-Strauss, Freud e Lacan. Adentramos, em parte, na exegese de Rubin para chegarmos ao seu pensamento a respeito da opressão das mulheres e sua análise da questão do gênero, para uma análise mais apurada de algumas noções caras ao pensamento queer.

Podemos compreender Marx e Engels como o foco indutor do ensaio de Rubin; são estes autores que mostram de forma exemplar a influência do capitalismo, da economia e da família na opressão que as mulheres sofrem, contribuindo muito para o feminismo. Mas tomemos estes autores, Marx e Engels, e o marxismo, de forma bastante crítica, já que eles teriam dado uma maior atenção à noção de classe, de economia, em relação à sexualidade.

Para a também feminista Monique Wittig, seria necessário não somente olhar a questão de classe como, ademais, “A mulher” em sua generalidade, mas, sim, as mulheres reais e outras relações que poderíamos chamar de microrrelações. Rubin, por sua vez, aponta que haveria de se dar um maior valor à própria sexualidade.

Por sua vez, a antropóloga se volta para uma obra de Engels, importante para o feminismo: “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”. Nesta obra, a antropóloga encontra no conceito de produção um duplo, que envolve tanto a produção material quanto a produção familiar. O feminismo destaca esta segunda produção, porque o grupo humano tem que se reproduzir de uma geração para outra e cada grupo tem um sistema de sexo-gênero.

O conceito de sistema de sexo-gênero nos remete à ideia de que há uma sexualidade biológica que sofre uma espécie de culturalização: processos em que a sexualidade biológica é transformada em produto da atividade humana. Podemos ver a abrangência deste conceito de Rubin; com ele poderíamos abordar tanto uma sociedade primitiva quanto o nosso capitalismo tardio e sua produção de sexo-gênero. Rubin aplica este conceito à ideia antropológica do parentesco — que vamos abordar mais a frente — afirmando que “um sistema de parentesco é uma imposição de fins sociais sobre uma parte do mundo natural” (Rubin, 1993, p. 10), ou seja, as formas de organização social são elaborações culturais impostas a uma parte do mundo natural. Para Rubin alguns outros nomes foram dados para este conceito como, por exemplo: 1) modo de reprodução; 2) e patriarcado. Todavia, em cada um deles encontraríamos determinados problemas, de modo que deveríamos deixá-los de lado em prol de uma terceira conceituação.

O primeiro termo, modo de reprodução, proposto primeiramente como um uma tentativa de ampliar a explicação do social não poderia ser utilizado com exatidão, pois o conceito de Rubin quer ir além de uma produção material, ou, um conceito que se limite a uma produção estritamente biológica.

O segundo termo, o patriarcado, se introduz para fazer uma distinção entre forças que mantêm o sexismo e outras forças sexuais. Este segunda termo tem o problema de estar ligado demais ao capitalismo e à figura do pai — o patriarca. Como antropóloga, Rubin não esquece que existem grupos opressivos que não perpassam a figura paterna, mas, sim, um ideal de masculinidade coletiva.

Por sua vez, o termo cunhado por Rubin teria a vantagem de não conter as limitações dos conceitos anteriores como, ademais, ele salientaria que o sistema de opressão não é inevitável; ele indicaria que é produto de sistemas de relações sociais bem específicas.

Independente do conceito a ser utilizado, o ideal seria uma compreensão da organização social e da reprodução das condições do sexo e do gênero. Nesta tentativa, Rubin passa para uma análise do parentesco, que seria composto de formas empíricas e observáveis do sistema de sexo-gênero. É nesta análise do parentesco que compreende a heterossexualidade obrigatória, compulsória. Esta análise seria uma continuação do projeto de Engels que na sua obra, já citada, faz um estudo da família por via do parentesco levando em conta a obra de Lewis Henry Morgan. Rubin se volta para uma análise do parentesco já amadurecida que é pensar a obra As estruturas elementares do parentesco, de Lévi-Strauss.

PARENTESCO E HETEROSSEXUALIDADE OBRIGATÓRIA

O primeiro dado colocado por Rubin é que, na perspectiva da antropologia, o parentesco não se resume a uma listagem de parentes biológicos. O parentesco, também, teria uma importância fundamental. Nas sociedades que ela chama de “pré-Estado”[1] que diz respeito às sociedades primitivas, o parentesco organizaria a vida social, as atividades econômicas, a política e, também, a vida sexual. Rubin vai embarcar na questão do parentesco tendo em vista que na descrição de Lévi-Strauss:

Não encara o sujeito humano como abstrato, sem gênero. Pelo contrário, o sujeito humano, no trabalho de Lévi-Strauss, é sempre o masculino ou feminino e os destinos sociais divergentes dos dois sexos podem, portanto, ser traçados. No momento em que Lévi-Strauss vê a essência do sistema de parentesco consistindo na troca das mulheres entre homens, ele constrói uma implícita teoria da opressão sexual (Rubin, 1993, p.7. Itálico nosso).

É esta teoria da opressão sexual que Lévi-Strauss teria construído, sem que visse ou salientasse suas implicações, as quais, Rubin tenta abordar. Neste momento não vamos remontar a argumentação de Lévi-Strauss sobre a “troca de mulheres” e nem mesmo toda a reelaboração feita por Rubin, mas, alguns pontos são fundamentais para perpassarmos de algum modo a crítica de Rubin. Creio que um dos elementos principais é uma pergunta que ela faz: “o parentesco é organização, e organização confere poder. Mas quem é organizado?” (Rubin, 1993, p.9 Itálico nosso). A resposta a esta pergunta no remete a uma teoria sobre a opressão tendo em vista o parentesco.

Para Rubin, a troca de mulheres implicaria numa distinção entre o presente e o ofertante. Se as mulheres são os presentes, os homens são os que trocam entre si as mulheres — são os parceiros de troca — e isso é que lhes confere o poder da organização social. Rubin aponta que “se as mulheres estão à disposição dos homens para doação, elas não estão em posição de dispor de si mesmas para se dar” (Rubin, 1993, p. 9). A troca de mulheres seria um sistema que mostra que elas não têm um direito pleno sobre si mesmas, daí a compreensão de que em Lévi-Strauss haveria uma elaboração sobre a opressão das mulheres que, ademais, deveria ser levada em conta pelo feminismo.

Se avançarmos no labirinto conceitual que Rubin vai tecendo deveríamos pensar sobre a sua ponderação a respeito de outra obra de Lévi-Strauss. Trata-se do texto chamado A Família. Neste livro “ele levanta a questão das pré-condições necessárias para os sistemas de casamento operarem. Indaga ainda sobre quais são os tipos de pessoas requeridos pelos sistemas de parentesco, mediante uma análise da divisão sexual do trabalho” (Rubin, 1993, p.11). Esta divisão de trabalho por sexos nunca foi um dado óbvio, mesmo que por muito tempo tenhamos visto homens e mulheres ocuparem sempre os mesmos cargos como se houvesse quase naturalização com relação ao trabalho e o sexo da pessoa. A este respeito a autora afirma que:

Embora toda sociedade disponha de algum tipo de divisão das tarefas por sexo, a atribuição de qualquer tarefa específica para um sexo ou outro varia enormemente. Em alguns grupos, a agricultura é trabalho das mulheres, em outros, trabalho dos homens. Há sociedades em que as mulheres carregam os fardos pesados, e outras em que são os homens. Existem até exemplos de mulheres caçadoras e guerreiras e de homens realizando as tarefas relativas aos cuidados às crianças. De uma pesquisa sobre a divisão do trabalho por sexo, Lévi-Strauss conclui que ela não é uma especialização biológica, mas que deve haver algum outro propósito. Este propósito, segundo ele defende, é assegurar a união dos homens e das mulheres, fazendo com que as menores unidades economicamente viáveis, contenham pelo menos um homem e uma mulher. (Rubin, 1993, p. 12)

Nesta citação, temos dois dados interessantes de serem comentados, pois remontam aos conceitos de sistema sexo-gênero e a elaboração do conceito de heterossexualidade obrigatória.

O primeiro dado é a respeito da divisão do sexo e do trabalho. Trata-se de reafirmar que esta divisão varia enormemente. Hoje vemos até com maior clareza este fato, sem recorremos aos dados antropológicos, pois as mulheres já estão em cargos que até pouco tempo eram entendidos como uma característica masculina muito forte como, por exemplo, a presidência de um país, vários cargos de chefia em grandes empresas; mas, também, trabalhos mais precários que envolviam tão-somente o masculino, como o trabalho na construção civil, o trabalho como caminhoneira, o trabalho como catadora de lixo e, ainda, se pensarmos em novas configurações de trabalho, poderíamos citar o grande envolvimento das mulheres como motoristas de Uber e empresas similares.

O segundo dado é a respeito do motivo, da razão, de uma divisão do trabalho com relação ao sexo. O motivo — de acordo com o antropólogo — seria a união de homens e mulheres criando as menores unidades economicamente viáveis. É neste momento que Rubin cunha a ideia de uma heterossexualidade compulsória, já que:

A divisão do trabalho por sexo pode, deste modo, ser vista também como um “tabu”: um tabu contra a mesmice entre homens e mulheres, um tabu dividindo os sexos em duas categorias reciprocamente exclusivas, e um tabu que exacerba as diferenças biológicas entre os sexos e que, em consequência, cria o gênero. A divisão do trabalho pode também ser vista como um tabu contra arranjos sexuais diferentes daqueles que envolvem pelo menos um homem e uma mulher, impondo assim um casamento heterossexual. (Rubin, 1993, p. Itálico nosso)

Da sexualidade natural haveria então um sistema sexo-gênero que trabalha sobre ele, que o culturaliza. Esta culturalização separaria as pessoas em dois gêneros, o homem e a mulher. Por sua vez, esta divisão também refletiria na divisão de trabalho, com determinados trabalhos para os homens e determinados trabalhos para as mulheres. Por último, depois de fazer esta grande diferenciação, impõe-se o casamento heterossexual o que, por sua vez, excluiria uma gama de outras relações possíveis. É interessante observar que, para Rubin, há uma opressão das mulheres, mas, também, esta relação “oprime todo mundo pela sua insistência numa divisão rígida da personalidade” (Rubin, 1993, p. 12).

Se até o momento estamos focando na mulher como sujeito, mas, também, em uma variedade de outros que são caracterizados como queer, no capítulo “A teoria queer e as masculinidades” vamos ver como, até mesmo, esta divisão rígida da personalidade é ruim para a constituição do masculino e como não é fácil Be a man (“ser um homem”) e se constituir como tal.

[1] Rubin aborda o mundo primitivo, mas não deixa de apontar que o tráfico de mulheres e a troca de mulheres não aconteceu somente neste período. Poderíamos, até mesmo, encontrar resquícios desta troca no ato comum no noivo pedir a filha ao sogro e este entregar a noiva.

Artigo: “O pensamento lésbico e a teoria queer”: http://www.nexos.ufsc.br/index.php/peri/article/view/3036