“Pelo cu: políticas anais.”: por uma ética da passividade.

rafael leopoldo
10 min readOct 19, 2016

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A tradução e publicação do livro Pelo cu: políticas anais no Brasil é, antes de mais nada, uma ação política. Em primeiro lugar, coloca-se à disposição um livro vinculado ao que hoje se acostumou denominar de estudos ou Teoria Queer, cujas obras principais ainda carecem de traduções para a língua portuguesa. Apesar disso, a produção brasileira de livros e artigos nos estudos queer é significativa e em franca ascensão. Em segundo lugar, este livro faz uma crítica feroz — profunda e sem perder o humor — a um sistema heterocentrado levando em conta a questão da passividade. O terceiro aspecto consiste no momento desta tradução e publicação. O Brasil é o país latino-americano que mais assassina pessoas LGBT, em especial travestis. Além disso e também por isso, a política brasileira parece, a cada momento, se esquecer das potencialidades de Junho de 2013 e se apresenta com o pior da direita, desde a pompa de uns pondés, aos ruídos de reinaldos azevedos, a política do ódio dos bolsonaros, até as imposturas dos olavos de carvalho.

Mas a escrita e tradução deste livro, que começa com um insulto, o famoso “vai tomar no cu”, além de política, colabora com uma significativa produção de conhecimento que impacta e enfrenta determinados saberes e se filia a outros. Por exemplo: o que esse insulto significa para quem tem o ânus como um órgão sexual? Quem tem o poder de determinar quais partes de nossos corpos devem ser considerados como órgãos sexuais? O que pode sair de um cu além de excrementos? Como é possível pensar a partir do cu ou pelo cu? Perguntas como essas perpassam a leitura do livro e nos levam para produção de uma ética da passividade. Para fazer isso, o livro retira a analidade do campo privado e a coloca no campo social e político e assim gera não somente uma analética, mas toda uma gama de possíveis políticas anais que são extremamente necessárias. Se há tanto preconceito, se há um dispositivo que decide sobre a vida e a morte de determinadas pessoas, se há tanto pânico em relação a qualquer possibilidade existencial que fuja do ideal estanque de uma feminilidade e de uma masculinidade de mármore, são necessárias políticas anais que possam esquizofrenizar o que alguns têm o orgulho de chamar de identidade. Esfarelar essa identidade, seja apontando-a como sem nenhum fundamento biológico, ou ainda, mostrando-a como uma ficção social, poderia nos tornar menos segregativos, menos fincados a uma ilusão de um essencialismo heterocentrado e suas identidades molares.

Pelo cu: políticas anais é o livro mais recente de Javier Sáez com coautoria de Sejo Carrascosa. Sáez é tradutor de diversos livros, autor de Teoria queer e psicanálise e um dos organizadores de Teoria queer: políticas lesbianas, bichas, trans, mestiças. Já Carrascosa se identifica como um autodidata. Em comum, ambos possuem uma longa amizade e trajetória do ativismo queer espanhol. É no trânsito dos saberes da Sociologia, da Filosofia, da Teoria Queer e da Psicanálise que surgem algumas indagações de uma ética da passividade, ou ainda, como preferem os autores, uma analética.

Na busca de uma origem a respeito da temática da analidade é sempre possível tentar buscar um ponto primário mais distante. No nosso caso, talvez fosse possível encontrá-lo na poesia, no romance, na pintura, de forma mais contemporânea na fotografia ou ainda no cinema. Todavia, já nas primeiras páginas de Pelo cu localizamos uma aliança teórica vital, já que o livro é dedicado a Paco Vidarte, autor da obra Ética bicha, um belo e radical livro de filosofia e a grande influência dos autores. Encontramo-nos, então, essencialmente, diante de uma abordagem filosófica da analidade e se expormos algumas referências anteriores a obra de Sáez e Carrascosa não nos espantaremos com a valorização do ânus como objeto teórico e/ou político. Iremos citar aqui apenas três dessas referências: a obra de Deleuze-Guattari, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado.

A princípio o tema do cu pode parecer esdrúxulo e espantoso, pois poderíamos vê-lo sem nenhuma dignidade filosófica, já que se costuma ponderar filosoficamente de forma mais contundente sobre a alma, sobre o etéreo, sobre o espírito[1] etc., e deixa-se de lado toda a complexidade da corporeidade e seus elementos, do prazer com o corpo até a estranheza e desconforto com ele. Além disso, em regra, quando pensamos o corpo damos privilégio epistemológico para algumas partes e não para outras, sempre um maior valor para a cabeça e uma desvalorização do baixo-ventre. Dessa forma, compreendemos que há toda uma arquitetura política do corpo, as partes dignas e as partes indignas, as partes desejáveis e as indesejáveis. O que há de novo na obra de Javier Sáez e Sejo Carrascosa é, exatamente, uma densa e importante produção teórica tendo como temática exclusiva o ânus. Daí podemos apontar a primeira referência filosófica, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, principalmente o primeiro tomo da sua obra O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.

No livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há um comentário que gera ecos importantes no tema da analidade e que vai afetar uma gama de autores como, por exemplo, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado. Trata-se aqui de afirmar que o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o ânus. Essa afirmação aparece no terceiro capítulo d’O anti-Édipo, intitulado “Selvagens, bárbaros, civilizados”[2], parte da obra deleuzo-guattariana que faz uma conexão com o saber antropológico e, também, produz uma crítica à Antropologia. O contexto da citação é a argumentação de que o problema do socius não é a troca — como proposto pela antropologia de Marcel Mauss -, mas marcar os corpos, codificar os fluxos — como proposto pela filosofia de Friedrich Nietzsche. Deleuze e Guattari trocam Mauss por Nietzsche, a Antropologia pela Filosofia[3] para afirmar que a máquina territorial primitiva funciona por meio de codificação de fluxos que investe nos órgãos e na marcação dos corpos.

Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como modelo para a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a ser colocado fora do campo social e, assim, tem-se um desinvestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas, centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente, mas desinvestido e privado. Muda-se do intensivo com seus objetos parciais para o extensivo com a formação de um eu. Sobre essa criação político-arquitetônica do corpo podemos citar um agudo comentário de Paul B. Preciado: “foi necessário fechar o ânus para sublimar o desejo pansexual transformando-o em vínculo social, como foi necessário fechar as terras comuns para assinalar a propriedade privada”[4]. Hocquenghem, de outra forma, diz que

ao descobrir o trabalho como fundamento de valor, a economia política burguesa o fecha imediatamente na forma de propriedade privada dos meios de produção. Freud descobre a libido como fundamento da vida efetiva, e o fecha imediatamente na forma de privatização edipiana familiar[5].

Guy Hocquenghem lê O anti-Édipo e, por meio dessa leitura, produz a sua obra O desejo homossexual, escrito nos anos 70 e no seio da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR), um espaço que se distanciava do discurso ameno dos gays de uma classe média branca e das feministas liberais. Juntamente com o FHAR estão as bichas, as travestis e uma gama de outros que não se identificavam com o bom feminismo da época. É necessário lembrar que essas fissuras nos movimentos é que vai gerar, nos anos 80/90, a Teoria queer.

Hocquenghem, n’O desejo homossexual, está em diálogo com a efervescência política da época, com a psicanálise freudiana e lacaniana, mas, também, como já salientado, recebe uma forte influência deleuzo-guattariana. Hocquenghem faz uma análise acurada da homossexualidade e de como ela foi relacionada a categorias religiosas — crime contra natura -, categorias jurídicas — relação da criminalidade e da homossexualidade -, categorias médicas — a homossexualidade como enfermidade, perversão etc. Mas, além disso, como ela está conexa com o capitalismo e o surgimento da família burguesa. N’O anti-Édipo já havia toda uma crítica ao familismo. Não obstante, o que nos parece interessante em Hocquenghem é que o desejo homossexual (não necessariamente o desejo do homossexual) poderia desestruturar uma sociedade falocrata. E esse é um dos motivos da paranoia anti-homossexual, do pânico anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se em agressão, em terrorismo machista — a atmosfera sombria do medo — e, de forma mais obscena, no assassinato, na eliminação física do outro. Na obra Pelo cu são apresentados exemplos dramáticos desse terror anal e os autores colocam o ânus, ademais, como um dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas.

Para Paul B. Preciado, o dildo, as práticas S/M e a erotização do ânus são capazes de produzir uma reapropriação de determinadas tecnologias de repressão que são reelaboradas de uma forma não heteronormativa. Na filosofia de Preciado, o ânus tem um lugar especial e à maneira militante — e produtora de utopias — de um manifesto encontramos a seguinte afirmação: “os trabalhadores do ânus são os novos proletários de uma possível revolução contrassexual”[6]. Para Preciado, o ânus teria três características que o empodera contrassexualmente:

Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de passividade, um centro produtor de excitação e de prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda.[7]

Esses três elementos podem ser questionados e o são por Javier Sáez e Sejo Carrascosa. No entanto, a potencialidade da analidade foi apontada de forma incisiva para gerar uma compreensão da necessidade de uma epistemologia que perpasse a superfície da pele mas, também, por toda as entranhas e que tenha como mote o final do reto, pois é desse lugar ainda obscuro que surgem as políticas anais e, para os autores de Pelo cu uma analética.

Uma ética anal ou uma ética da passividade consiste na própria valorização da posição passiva. E ao lermos Pelo cu sabemos que isso não é pouco. A temática central do livro de Sáez e Carrascosa parece ser o ânus, mas talvez seja a passividade e o ânus se configure apenas como uma forma de passividade, mesmo que ele possa ser, às vezes, muito ativo. Os autores afirmam que em mais de oito países do mundo o sexo anal pode acarretar a morte e em mais de oitenta a prisão perpetua. Ou seja, estamos diante de um dispositivo que decide sobre a vida e a morte das pessoas, diante de um pânico à passividade e a tudo que ela foi vinculada historicamente. Daí que é necessário o orgulho passivo de que nos falam Sáez e Carrascosa, essa analética já apontada por Paco Vidarte em sua Ética bicha, uma ética não mais cerebral (sabemos as mazelas da razão), mas uma ética anal que vai negar o poder, uma política do buraco que cansou da troca desigual dos discursos marcados.

Agora trata-se de absorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo e não dar nada em troca. A passividade é acompanhada de uma grande recusa a determinadas negociações. Daí o giro histórico da analidade passiva para a analidade ativa e esse, quem sabe, seja o terreno em que se produza uma real valorização da passividade; um orgulho passivo surgido desse lugar inesperado que agora está novamente no campo social e político.

Por Rafael Leopoldo* e Leandro Colling**

*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pós-graduado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). É autor do livro Temporadas de abandono e Introdução ao O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (no prelo). Contribuiu para a coletânea de textos sobre cinema brasileiro no livro Directory of World Cinema: Brazil. Correio eletrônico: ralasfer@gmail.com.

**Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC), Milton Santos, e professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, ambos da Universidade Federal da Bahia. Criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e um dos criadores e editores da revista acadêmica Periódicus, primeira e única inteiramente dedicada aos estudos queer no Brasil. É autor do livro Que os outros sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador dos livros Stonewall 40 + o que no Brasil? e Estudos e políticas do CUS, todos publicados pela Editora da Universidade Federal da Bahia. Correio eletrônico: leandro.colling@gmail.com

[1] Talvez por isso Deleuze e Guattari, de forma irônica e contra-intuitiva, escrevem que somente o espírito é capaz de cagar. Claro que os autores neste momento fazem uma referência a sublimação da analidade, os prazeres anais deveriam ser sublimados em uma sociedade heterocentrada e, por isso, o espírito é anal, o espírito é aquele que defeca.

[2] A respeito de grande parte da antropologia deleuzo-guattariana ver, ademais, LEOPOLDO, Rafael. Deleuze & Guattari: critica a psicanálise freudiana. Dissertação de Mestrado — Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2015.

[3] Claro que Deleuze e Guattari também fazem alianças com a Antropologia, mas chamam para o seu ambiente teórico o mais filosófico dos antropólogos: Pierre Clastres.

[4] Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 136.

[5] Hocquenghem, Guy. El deseo homossexual. Tradução de Geoffroy Huard de la Marre. Espanha: Melusina, 2000. p. 50

[6] Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 32.

[7] Idem, ibdem.

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